Por Claudio Borges | Fotos: Jay Roxx
Três excelentes representantes do punk/hardcore numa única noite é o sonho de quem é fã do estilo. Porém, provando que nem sempre sonhos possuem apenas bons momentos, os californianos do Black Flag mostraram como escolhas erradas transformam um belo sonho em quase pesadelo. Espremidas entre os capixabas do Mukeka Di Rato e os californianos do Black Flag, as também californianas do L7 se saíram melhor e animaram a noite, arrancando boas reações do público que encheu o Sacadura 154.
Mukeka di Rato
O quarteto de Vila Velha (ES), formado em 1995, mandou um set direto e sem firulas, como mandam as escrituras do hardcore. Fabio Mozine (baixo), Paulista (guitarra), o novo cantor Fepaschoal e Fábio Truci (bateria) têm postura mais irreverente, mas com letras de cunho social – basta conferir o álbum “Boiada Suicida” (2022) –, e conseguiram empolgar quem chegou mais cedo a abrir a primeira roda. Se soam um tanto repetitivos, isso se deve mais às amarras do gênero do que à falta de imaginação dos músicos. Como o que mais conta no hardcore é a energia, não precisam se preocupar muito, pois, neste quesito, a banda passa no teste com louvor.
L7
A primeira visita de Suzi Gardner (guitarra e voz), Donita Sparks (voz e guitarra), Jennifer Finch (baixo e voz) e Dee Plakas (bateria e voz) foi há 30 anos, no saudoso festival Hollywood Rock. Abrindo para o furacão Nirvana, o quarteto formado em Los Angeles, em 1985, teve grande destaque numa apresentação cheia de vigor. Não foi diferente no palco da Sacadura 154. O tempo decorrido entre uma e outra parece não ter comprometido a intensidade delas: foram 23 músicas em cerca de uma hora e 20 minutos de show.
Da abertura com “Deathwish”, “Andres” e “Everglade” vieram os primeiros sinais de que a noite seria delas. Músicas simples e de refrãos contagiantes fizeram uma imensa roda ser aberta para o temor de quem fica mais próximo à grade. No entanto, como era ocasião festiva, nenhum incidente ocorreu e foi apenas diversão. Mesmo a inclusão de músicas com andamento mais lento, como “Can I Run”, “Human”, “No Existent Patricia” e “Fighting the Crave”, não estragou a alegria.
Na verdade, ajudou a dar um certo descanso aos mais entusiasmados. E se nesses momentos parecia que a plateia havia parado, no palco a coisa era bem diferente. Carismáticas, elas atacaram seus instrumentos com força e ardor. “Monster”, “Bad Things” e “Fuel my Fire” foram pontos altos. Devido ao sucesso do álbum “Bricks Are Heavy” (1992), lançado no auge do sucesso das bandas de Seattle, o L7 foi rotulado como punk-grunge. A junção da simplicidade e fúria do punk (“Slide”) com o peso do grunge (“Shove”), aliada a uma cadência e melodias próximas da surf music (“Mr Integrity”, apresentada por Donita como “essa é para os surfistas”), é a característica que mais salta aos ouvidos.
O álbum foi a base do show, emprestando nove de suas 11 canções. Dele vieram três porradas para elevar ainda mais a temperatura da parte final do show: “Wargasm”, o megahit “Pretend We’re Dead” e “Shitlist”. O bom single “Dispatch from Mar-a-Lago” (2017) não fez feio perto dos clássicos, e, para fechar com chave de ouro, duas do segundo álbum, “Smell the Magic” (1990), fizeram todo mundo pular: “American Society” (cover de Eddie & The Subtitles) e a rápida, e que as descreve bem, “Fast & Frigthning” (“Got so much clit she don’t need no balls”, ou seja, “Tem tanto clitóris que ela não precisa de bolas”). Sem inventar e utilizando o que há de melhor em seu repertório, saíram ovacionadas. Girl power!
Black Flag
Um dos bastiões do hardcore americano, responsável por dar ao mundo ninguém menos que Henry Rollins e álbuns como “Damaged” (1981) e “Slip it in” (1984), o Black Flag veio pela segunda vez ao Brasil tendo como único membro original o seu fundador, Greg Ginn (guitarra). A primeira vez foi um pouco antes de a pandemia parar o mundo, em março de 2020, e apenas em São Paulo. Agora, a tournê comemora o álbum “My War” (1984).
Como bons punks, a entrada do quarteto – completado pelo baixista Harley Duggan, o baterista Charles Wiley e pelo skatista profissional Mike Vallely nos vocais – se dá com as luzes acesas. Pareciam roadies. Se olharam e atacaram a faixa-título do álbum homenageado, e o impacto inicial da abertura foi esvaindo conforme o disco foi sendo executado. Um tanto controverso, “My War” causou discórdia à época por trazer um lado A repleto de músicas cheias de convenções, e um lado B com andamento lento. Imagine um Black Sabbath em marcha lenta. Algo inconcebível para uma banda de hardcore, estilo no qual a alta velocidade é lei.
Quando o quase doom “Nothing Left Inside” começou, a reação veio num número maior de visitas ao banheiro e deslocamentos para o bar. Quando chegaram em “Scream”, houve quem se dirigisse para porta de saída, inclusive alguns trajando camisetas da banda. Se a escolha de apresentar um álbum que confronta seu público pode ser considerada uma atitude das mais punks, a segunda parte confirmou o que muitos já sabiam: deveriam ter deixado “My War” de lado e apresentado um show só com ‘greatest hits’, o que ocorreu depois de uma pequena pausa.
A segunda parte do show ajudou a trazer algum equilíbrio para um jogo percebido como perdido. E se uma vacância como a de Henry Rollins não é fácil de preencher, a escolha de Mike Vallely se mostrou acertada: ele “canta” e age como um clone de Rollins, imprimindo intensidade necessária a todas as interpretações. Já Charles Wiley pareceu mais tranquilo ao tocar as composições lentas do que as na velocidade da luz. Greg Ginn e suas dissonâncias e riffs elásticos esteve sempre no comando, deixando o baixo de Harley Duggan segurar a base das músicas.
O início da segunda parte trouxe as quatro faixas que compõem o primeiro EP do grupo, “Nervous Breakdown” (1979) – com o vocalista Keith Morris, que depois formaria o Circle Jerks. A crueza e energia dessas primeiras composições inflamaram o público, que pareceu desconsiderar o que veio antes. O antepasto foi uma guerra indigesta.
Veio uma acachapante sucessão de clássicos para marretar a cabeça dos ávidos pelo hardcore mais brutal. Excetuando a inclusão de duas músicas extraídas do estranho “In My Head”, a faixa-título e “I Can See You”, que fizeram alguns voltarem ao pesadelo da guerra, o restante veio na forma dos clássicos “Black Coffee”, “Gimmie Gimmie Gimmie”, “Six Pack” e uma versão de “Slip it in” com a cantora que dividiu os vocais com Rollins no álbum: Suzi Gardner, do L7. Surpresa para muitos que nem sabiam da conexão entre os dois grupos.
O show poderia ter sido encerrado após a matadora sequência de “Room 13”, “Revenge” e as clássicas “TV Party” – com direito a letra atualizada – e “Rise Above”, mas a banda insistiu ao tocar uma longa e extenuante versão de “Louie Louie” (Richard Berry and the Pharaohs). Total anticlímax. Greg Ginn tinha a chance de ter feito um show histórico, mas algumas escolhas se mostraram equivocadas. Tivesse homenageado o álbum “Damaged”, por exemplo, ou mesmo só realizado um show com músicas diversas – nem todo álbum merece uma execução integral –, ele teria produzido uma contagem maior de pontos altos. Quem sabe numa próxima visita possamos passar por cima disso.
O saldo final acabou sendo um cansaço hardcore: em noite dedicada ao punk, o Black Flag provocou bocejos enquanto L7 empolgou com hits e energia.
Setlist L7
1. Deathwish
2. Andres
3. Everglade
4. Scrap
5. Stadium West
6. Shove
7. One More Thing
8. Mr. Integrity
9. Slide
10. Can I Run
11. Human
12. Bad Things
13. Monster
14. Fuel My Fire
15. Fighting the Crave
16. Drama
17. Non-Existent Patricia
18. Wargasm
19. Dispatch From Mar-a-Lago
20. Pretend We’re Dead
21. Shitlist
22. American Society
23. Fast and Frightening
Setlist Black Flag
My War
1. My War
2. Can’t Decide
3. Beat My Head Against the Wall
4. I Love You
5. Forever Time
6. The Swinging Man
7. Nothing Left Inside
8. Three Nights
9. Scream
Greatest Hits
10. Nervous Breakdown
11. Fix Me
12. I’ve Had it
13. Wasted
14. Jealous Again
15. No Values
16. Black Coffee
17. Gimmie Gimmie Gimmie
18. Six Pack
19. Depression
20. In My Head
21. I Can See You
22. Room 13
23. Revenge
24. TV Party
25. Rise Above
26. Louie Louie