Para aqueles que acompanharam com atenção os tempos turbulentos do metal nos anos 90, o nome Devin Townsend costuma ser uma presença muito frequente. Envolvido com música desde a sua infância, o canadense passou por seus anos escolares em constante envolvimento com várias bandas, a maior parte delas de vida curta ou sem nenhuma expressão mais notória, mas que serviam para manter vívido e crescente o seu interesse no desenvolvimento de uma carreira artística.
A relação entre sonho e realidade só começou a encontrar uma proporção mais vantajosa para o guitarrista/vocalista quando ele começou a escrever sob o nome Noisescapes. A demo que gravou sob este nome foi muito apreciada pela Relativity Records, que ofereceu ao músico o seu primeiro contrato de gravação. Mas este ainda era apenas o primeiro sinal de que os tempos estavam mudando na sua vida, e pouco mais tarde – antes ainda de conseguir produzir algo mais profissional com o Noisescapes – veio a melhor notícia: Impressionado com a performance vocal do canadense naquela demo, o lendário guitarrista STEVE VAI convidou Townsend para ingressar em sua banda e gravar o seu então novo álbum de estúdio, o aclamado Sex & Religion, de 1993. Claro que Devin aceitou.
Ainda junto com VAI ele seguiu em sua primeira grande turnê, e dali continuou impulsionando sua carreira adiante com a banda britânica THE WILDHEARTS. Imaginava-se que as coisas não poderiam ser melhores para aquele músico canadense ainda muito jovem, mas embora estivesse feliz com as oportunidades, em seu íntimo Devin carregava uma frustração que ia aumentando conforme o tempo passava: “Eu estava me tornando produto da imaginação de outra pessoa, e isso estava se mesclando com a minha própria personalidade. Essa era uma combinação terrível”, declarou ele para a Hard Rock Magazine em 2001. E, antes de melhorar, as coisas rapidamente pioraram: aquele contrato que fora antes oferecido pela Relativity fora revogado tão logo Townsend saiu em turnê com o VAI. “Eu acho que eles só me ofereceram um contrato para que eu cantasse no disco do Steve”, ele declarou em 2006 para a mesma Hard Rock Magazine.
Se A IR8 – banda thrash que formou ao lado do baixista Jason Newsted (então no METALLICA) e do baterista Tom Hunting, do EXODUS – não fora planejada como algo realmente profissional, e a Roadrunner tenha tratado a música dele com desdém, em 1994 a Century Media mostrou a sua força e ofereceu a Townsend a sua primeira oferta real: um contrato de cinco álbuns, uma enorme prova de confiança, e que logo mostraria o seu real potencial.
Ao mesmo tempo em que trabalhava ao lado da banda FRONT LINE ASSEMBLY, Townsend começou a mostrar sua verdadeira face artística sob o nome STRAPPING YOUNG LAD. A estratégia era simples, já que ele não queria que suas músicas viessem sob o auspício de um ‘projeto solo do vocalista do VAI’. Assim, Heavy As A Really Heavy Thing, foi lançado em 1995. Pouco depois ele começaria a trabalhar com o baterista Gene Hoglan (DARK ANGEL, TESTAMENT, DEATH, FEAR FACTORY e muitos outros), o guitarrista Jed Simon (ZIMMERS HOLE, ex-TENET) e o baixista Byron Stround (CITY OF FIRE e ZIMMERS HOLE, ex-FEAR FACTORY) no álbum City, o segundo disco completo do STRAPPING YOUNG LAD, lançado em 1997 (e essa é uma história que provavelmente você verá aqui em outra ocasião). Mais para o fim do mesmo ano (1997), ele finalmente começaria a trabalhar no primeiro álbum que lançaria sob o nome DEVIN TOWNSEND: Ocean Machine: Biomech.
Com Townsend acumulando os trabalhos nos vocais, guitarra e teclados, o álbum ainda apresenta o baixo de JR Harder (PUNKY BRÜSTER, outro projeto ao lado de Townsend) e a bateria do saudoso Marty Chapman (que cometeu suicídio em 2014), e apresenta uma musicalidade muito diferente daquela que conhecíamos do STRAPPING YOUNG LAD, embora o caráter artístico de Townsend aparecesse imaculado em cada verso de cada uma das canções presentes no álbum, que traz mais de uma hora de música.
De fato, ao colocar o álbum para rolar, o ouvinte começava a entrar em um novo universo. Com a pequena narrativa poética que abre a canção Seventh Wave (a narrativa vem da obra In Memoriam A. H. H., lançada em 1850 pelo poeta britânico Alfred Tennyson, e possui uma das frases mais célebres da poesia britânica, “The hills are shadows, and they flow from form to form, and nothing stands”), o ouvinte é absorvido por um mundo de guitarras pesadas e fortes melodias, que vão crescendo até culminar no ótimo refrão, onde é impossível não cantar os versos “I’ll wait for the ocean to rise up and meet me” junto com a música.
Essa mesma sensação é ainda aprofundada na segunda faixa, Life, que de tão bonita, simples e cativante não seria nem um pouco estranha de se ouvir tocando em rádios FM. A letra, bonita e repleta de sentimento (cortesia sempre usual de Devin Towsend) dá sentido ainda maior aos movimentos do instrumental, que aqui apostam no padrão de repetição para cativar o ouvinte. Para variar, funcionou muitíssimo bem. As guitarras pesadas de Night e Hide Nowhere (com um riff ótimo) contrastam perfeitamente com o clima acústico de Sister, uma das mais trabalhosas letras que Devin criou ao longo de sua jornada (sim, estou fazendo uma piada, e você sacou isso, certo?).
Se a música é extremamente cativante, a emoção que ela transmite é tão cativante quanto. Simples, os versos de 3 A.M. ecoam na mente do ouvinte, assim como a melodia pungente que carrega adiante o refrão de Voices In The Fan. Outra imperdível, Funeral (dedicada à memória de Jesse Cadman) traz um acento post-rock cativante, e Bastard (I: Not One of the Better Days / II: The Girl from Blue City), com seu riff pesado, sensível e melódico faz você sentir na carne a força do verso, “Grey people stare at a static sky”, que tanto se assemelha a alguns momentos da nossa vida cotidiana.
Dono de milhares de fãs ao redor de todo o mundo, Ocean Machines: Biomech recebeu uma justa homenagem neste mais recente 1 de maio, quando Devin Townsend transmitiu (direto do The Farm Studios, no Canadá) uma performance incrível do álbum na sua íntegra, acompanhada online por fãs do mundo inteiro, e claro que, dentre eles, lá estava eu, diante da tela do meu computador e com o fone de ouvido em volume máximo. Afinal, é assim a melhor forma de absorver todos os detalhes desta obra clássica. Em um cenário de tirar o fôlego, Townsend acompanhou as canções uma a uma, e até ofereceu um bis, quando tocou um trecho da versão demo da música Ocean Machines, em versão acústica. “I’ve found a way through the Ocean Machines”, ele cantou. E que saudade sentimos de ouvir uma performance como essa em um show realmente ao vivo…