Pode até parecer estranho, alguns sequer imaginariam, mas já são 28 anos de carreira. Vinte e oito anos atrás nascia na Noruega o Enslaved, fundado por um guitarrista (Ivar Bjørnson) de então apenas 13 anos de idade, e por um baixista/vocalista (Grutle Kjellson) então com 17 anos. Muita coisa mudou desde então. Muita coisa mesmo. Quando se fala na cena norueguesa do black metal, ninguém dispõe de uma trajetória sequer comparável ao Enslaved. Tudo bem que o começo não fugiu muito ao padrão, garotos realmente muito jovens, apaixonados por death metal e que viram de repente, na nascente sonoridade típica do black metal norueguês, a sua forma mais adequada de expressão musical e cultural. Acredite, em 1991 isso não era exceção, era antes uma tendência. Com o passar dos anos, a banda moldou a influência sonora e lírica de gente como Mayhem e Bathory em um black metal forte e característico, que colocou a banda em par de igualdade com Satyricon e Emperor em dois splits lendários. Fomentou ainda mais mudanças na sua sonoridade em busca de uma expressão única, e mesmo sob constantes transformações na formação, os dois membros fundadores permaneceram firmes no comando, com os mesmos ideais, como sempre haveria de ser. E foi para representar toda essa história que o Enslaved de Ivar Bjørnson e Grutle Kjellson voltou para o seu segundo show em solo paulistano.
Antes porém dos noruegueses invadirem o palco do Carioca Club para a sua ‘Second Coming’, foi a vez e a hora dos paulistanos do Basalt passarem o seu recado. E, acho que não é errado falar, a apresentação do Basalt foi icônica, e memorável (embora talvez não pelo motivo mais apropriado), repleta de sentimentos extremos. E sim, parte dos ‘sentimentos extremos’ que me referi vêm da música do grupo, uma mistura poderosa de todos os caminhos mais tortuosos da música, o que gera uma sensação de caos, confusão e torpor que apenas o sludge é capaz de fomentar. A outra parte vem, é claro, da questão política, talvez o grande mal dos últimos anos no nosso país (e boa parte do mundo). Lá pelas tantas, o vocalista fez um curto discurso falando sobre a postura do fã de música extrema, que deveria ser de contestação, e nunca de validação dos atos de quem ocupa os degraus mais altos na escala de poder. Na hora, embora tenha arrancado apenas aplausos tímidos, tudo parecia estar acabado por ali mesmo, sem maiores ressalvas. Porém, bastou o show terminar para que alguém da plateia começasse a gritar para o palco aquela palavra tão comumente usada hoje, terminada em ‘ista’. E não estou falando em ‘baixista’. Muito menos de ‘guitarrista’. A banda fez bem em não criar caso, e no fim, só restou aquele desânimo final, algo que não convinha depois de um bom show. Enfim, uma pena que as coisas tenham terminado assim.
Com os ânimos novamente em ordem, sem retoques políticos, e com uma pontualidade de causar inveja, o Enslaved tomou o palco em seguida. Sem enrolação, Ivar Bjørnson e Arve “Ice Dale” Isdal (guitarras), Grutle Kjellson (baixo e voz), Håkon Vinje (teclados) e o estreante em São Paulo, Iver Sandøy (bateria) vieram para tentar superar a apresentação de 2017. Se em 2017 os noruegueses dividiram o protagonismo com os islandeses do Sólstafir nesta mesma casa de shows durante do Overload Music Fest, desta vez o Enslaved era indubitavelmente o destaque, o que sempre costuma ser perceptível na escolha do ‘setlist’ da apresentação. E, neste quesito, como se decepcionar com uma banda afiada como esta?
Logo de cara, uma canção que já se tornou um clássico no repertório dos noruegueses: Ethica Odini, com suas linhas de guitarra melódicas e cativantes chegou para colocar o Carioca Club abaixo, ora com os vocais black metal de Grutle, ora com a voz limpa de Vinje. Tocada logo de cara para cativar o público, ela acabou sendo a única do bem sucedido Axioma Ethica Odini (2010), algo que não chegou a surpreender ninguém. Mantendo ainda o foco no repertório mais atual e repleto de influências/incursões do rock progressivo, veio Roots Of The Mountain, também muito bem recebida por um público que agora já era mais do que duas vezes maior do que aquele que assistiu a banda de abertura. Embora compreenda a razão da escolha de Roots of the Mountain, confesso que sempre me decepciono em perceber que não foi Thoughts Like Hammers a canção escolhida para representar o álbum RIITIIR, de 2012. Os riffs esmagadores dessa canção cairiam muito bem ao show, além do clima evocativo da letra ser um bálsamo para o cérebro. Mas, as coisas são como são, e o show tinha que continuar.
A sequência Ruun (Ruun, 2006) e The Rivers Mouth (E, 2017) deu sequência ao show, e, sem que soubéssemos, estava encerrada a primeira parte, focada na citada ‘era atual’ dos noruegueses. Estava na hora do black metal, e foi justamente com essas palavras que Grutle Kjelsson anunciou Loke, a primeira do clássico Frost (1994), o álbum escolhido como destaque para essa apresentação. Era perceptível que o vocalista tinha um cuidado especial com a plateia, várias vezes explicando a base lírica das canções, algo que sempre foi um dos diferenciais desta banda. Fenris, Gylfaginning e Isöders dronning vieram na sequência, arrancando lágrimas dos fãs de black metal ali presentes, e mostrando a força que o antigo repertório do Enslaved ainda exerce sobre o seu público.
De agora em diante, as coisas seriam balanceadas entre o extremo e o progressivo, e Havenless fez Below The Lights (2003) aparecer para os fãs. Sacred Horse, outra faixa do mais novo álbum da banda, E, veio na sequência, e então o quinteto saiu do palco sob gritos da plateia, que claro, sabia de antemão que eles voltariam. Como que para saciar de vez a curiosidade de todos aqueles que como eu queriam ter um vislumbre dos talentos do novo baterista, Iver Sandøy voltou para o palco sozinho, e se dedicou a um curto e eficiente solo de bateria. Confesso que não sou muito fã de ‘solos’ em shows, mas este foi até justificável, já que estávamos sim curiosos com a presença daquele que ocupa o posto que durante quinze anos foi de Cato Bekkevold. Com a banda completa de volta ao palco, o show seguiu com Isa, clássica faixa-título do álbum de 2004. O momento, embora indicasse que o show estava chegando ao fim, foi até engraçado: Enquanto tocavam a música, justamente no momento em que é citado o nome da runa do gelo na canção, Grutle erguia os braços, imitando o formato da runa. E a plateia respondia, mas sempre fora de sincronia, o que causou um efeito bastante interessante, para dizer o mínimo.
O fim da noite chegou justamente com aquela canção que eu mais esperava ouvir: Allfǫðr Oðinn, uma das músicas que apresentou o Enslaved ao mundo em 1993, época do lançamento do EP Hordanes Land. A impressão que a banda deixou não poderia ter sido mais positiva. Diante de um bom público, eles se mostraram simpáticos e musicalmente afiados, Sandøy é um baterista digno do posto de Bekkevold, e a dupla de guitarristas Bjørnson/Ice Dale continua uma das mais instigantes de todo o cenário do metal extremo. Parece mentira que esta banda já faz isso há 28 anos. Parece mentira que já gostaríamos que eles estivessem voltando para mais shows.