Quase três décadas de excelentes serviços prestados à música brasileira marcam a carreira do multi-instrumentista Fabiano Negri. Do rock clássico ao folk, da soul music ao hard rock chegando ao heavy metal, não há como não se render à sua vasta discografia solo e aos trabalhos com os grupos Rei Lagarto, Dusty Old Fingers e Unsuspected Soul Band. O novo capítulo desta história que merece ser muito mais conhecida pelo público brasileiro (e no exterior também!) é Mysteries The Night Hides, segundo trabalho dedicado exclusivamente ao metal pesado, empreitada que Negri iniciou com ZebathY, em 2022.
Vocalista, compositor e produtor, o músico de Campinas (SP) é um daqueles privilegiados seres humanos que conseguem impor alta qualidade em tudo o que faz. Em sua nova empreitada, além da voz, ele gravou guitarra, baixo, bateria e teclado e ainda produziu e mixou as cinco faixas, deixando somente a masterização para Ric Parma. E antes que alguém ache estranho um full lenght ter só cinco canções, saiba que a obra totaliza 40 minutos e 55 segundos do mais puro heavy metal, onde a temática envolve histórias de horror, a base que fundamentou o Black Sabbath, único e verdadeiro criador da música pesada.
Transitar entre vários estilos, no caso de Negri, nem de longe é oportunismo. É reflexo direto do que ele ouve nos momentos de compor. E, ele confirma, nos últimos anos o heavy metal e o hard rock voltaram a ocupar a maior parte do seu tempo, algo que explica a transição do rock dos EPs Reborn e Reborn II, ambos de 2021, para a junção de Black Sabbath e Judas Priest no ano seguinte. E, em 2023, para a influência de Iommi, Osbourne, Butler e Ward ele parece ter agregado também as sementes de Candlemass, Witchfinder General, Reverend Bizarre e Trouble.
Se possível fosse reunir essa galera toda para uma audição do álbum, tenho certeza de que a aprovação seria unânime. A qualidade é tanta que a faixa-título, com 10 minutos e 27 segundos, não é cansativa, mas um deleite para quem curte metal “arrastado”. Lembra das músicas Eternal Idol, gravada por tio Iommi e uma subestimadíssima encarnação do Black Sabbath em 1987, e Seventh Star, do álbum homônimo de 1986 com Glenn Hughes no vocal? Pois é, o clima em Mysteries The Night Hides é este. Após um belíssimo solo, ali por volta de 5 minutos, a canção ganha uma doce transição, baseada no teclado e seguida por duas estrofes onde o autor praticamente declama:
“Going down into the mud with them
The feeling of dread and the adrenaline
A glimpse of what could have been
The human being facing his most primitive fear
A sea of consciousnesses
Scattered in torn bodies
Serene are the faces of the dead
Strange is the attraction to the dead”
A partir daí a cadência é retomada em um “crescendo” para o refrão…
“An endless garden of stone
The World of those who are gone
Melancholic is the farewell
Mysteries that the night hides”
…ser repetido até a conclusão sombria da canção.
Segunda faixa, A Necessary Evil é uma das provas de que Negri é uma das melhores vozes do rock pesado nacional. Músico experiente, e conhecedor dos seus limites, ele não tenta emular nenhum ídolo consagrado ou – como muitos iniciantes ainda insistem em fazer – tentar ultrapassar escalas inalcançáveis com agudos que, normalmente, são meramente um clichê desnecessário.
Iniciando de modo calmo, a música dá a entender que o ritmo será assim até o fim. Mas em uma mudança de andamento, Negri surpreende com um refrão que só não é “romântico” por causa das frases:
“Life as a dream
Love as a lie
Mankind as a fraud
Is there anybody here?
Face the truth
If you want to survive
Don´t down on your knees
So you realize and see
We are here
A necessary evil”
Logo adiante, um novo redirecionamento e o rumo ganha um ar mais rápido, onde um riff excelente parece te conduzir perigosamente para uma estreita estrada. Os freios vêm com o refrão acima, mas são mera ilusão, pois rapidamente um solo de guitarra mostra que nem sempre o fim do trajeto é calmo.
E se tem história de terror, não poderiam faltar os sempre enigmáticos e assustadores sugadores de sangue. Vampires mostra a eterna contradição dos seres criados a partir de Drácula, obra que o escritor irlandês Bram Stoker lançou em 1897. Eles têm vida eterna mas, para alcançá-la, precisam antes morrer…
“Love me now
Well, wish me now
Kill me now
Drink my blood
Drown me now
Darken me now
Blossom me bitterly in your blood”
…ou, ao menos, abandonar a vida… digamos… tradicional:
“We parasitize ourselves to have eternal youth
So look into the mirror; evil doesn´t age the heat of your desire
Live in shadow of eternity, my love
Running away from humans and their beliefs
I´ll take you to the highest point of my castle
We´ll feed on suffering into the night
We´ll feed on suffering into the night”
Mais pesada, Terrifying Lullaby me fez pensar como seria se David Coverdale – entre 1978 e 1894, antes da fase glam do Whitesnake (nada contra, gosto de ambas) – tivesse enveredado pelo heavy metal e não pelo hard rock que caracterizou sua carreira. A faixa, que trata das bruxas, mostra algo que se pouco ouve no estilo: o peso das guitarras, baixo e bateria firme e belamente sedimentadas sobre arranjos de piano. Com variações intercalando carga e calmaria, a canção é outra cuja duração, 10min10s, não cansa os ouvidos nem testa a paciência do ouvinte. E isso, caro leitor, é uma raridade no amplo mundo da música pesada. Seu final apoteótico é outro destaque altamente positivo.
E tudo, caprichosamente, contrasta com The Raven´s Feast, que fecha uma das grandes e gratas surpresas do heavy metal brasileiro em 2023. Com apenas 3 minutos e 19 segundos, mesmo tendo apenas o piano como guia, a faixa sobe o nível geral da obra com a voz impactante de Negri em uma impressionante interpretação. E dizer que o autor, em 2019, chegou a cogitar encerrar sua brilhante carreira diante da falta de reconhecimento para sua efetiva contribuição à música nacional. Ainda bem que esta ideia foi deixada de lado.