Texto e fotos por Daniel Agapito
Uma das grandes revelações da música brasileira nos últimos anos – e não só do rock e do metal, mas da música no geral –, o Papangu tem impressionado tanto fãs quanto críticos com seu som único, fundindo rock progressivo setentista, diversas vertentes do metal extremo e tudo do bom e do melhor da música nordestina. São os filhos bastardos de Opeth e Luiz Gonzaga. Com seu primeiro álbum, o brilhante Holoceno (2021), se tornaram um dos nomes para ficar de olho no underground mundial, rendendo boas reações pelas Américas e pela Europa, mas foi com seu último álbum, Lampião Rei, lançado em setembro do ano passado, que realmente se firmaram como um dos principais nomes em ascensão no estilo. Para os que ainda não conhecem, o álbum é um trabalho conceitual ambicioso que conta a história da ascensão de Lampião, pilar da cultura regional.
Durante a primeira parte da turnê do álbum (que contou com uma apresentação “mística, intensa, envolvente e autêntica” no Knotfest), parecia que tudo estava indo bem, que iam decolar a qualquer momento, mas logo após o último show, no Rio de Janeiro, foram roubados à mão armada e perderam mais de 50 mil reais em equipamento e merchandise. Os fãs rapidamente conseguiram recuperar boa parte do valor, e banda, como agradecimento, anunciou a Turnê Engaiolada, passando por 10 estados com 16 shows em menos de um mês, prometendo uma experiência diferente a cada noite. Dentre esses shows, três foram na capital paulista, um no Bar Alto (23/1), início da turnê, um na Porta Maldita (30/1), no qual este que vos escreve marcou presença, e esta data na La Iglesia, todos às quintas-feiras.
A noite seria oficialmente iniciada por volta das 21h com Sarine cuidando da abertura. Esse é um projeto solo do versátil Marian Sarine, músico que faz parte tanto do DEAFKIDS quanto do Teto Preto, ambos nomes de expressão no meio mais underground nacional e quem já foi a um show do DEAFKIDS sabe que é algo bastante diferente, divisivo – descrevi sua abertura do show do Lightning Bolt como “um show que estica os limites da música convencional”, mas que “conseguiu também hipnotizar os que estavam presentes”. Ame ou odeie, a psicodelia transcendental percussiva deste projeto solo segue, esperadamente, em uma linha similar. Independente de qualidade musical, é certamente um espetáculo diferenciado, algo dinâmico e que chama a atenção. Banhado por um véu de luz vermelhas e outras luzes miscelânea de seus inúmeros pedais e sintetizadores, ele começou sua apresentação. A disposição de seus instrumentos no palco era um tanto quanto diferente: era ele sentado atrás de uma mesa cheia de pedais de efeito, mas cheia mesmo, tanto que eles até caíram diversas vezes durante a performance, e outra mesa repleta de sintetizadores.
O seu som é inegavelmente experimental, uma alquimia sonora, mas diferente de outros artistas do estilo; não soa como se fosse um neandertal descobrindo um pedal de distorção ou como se estivessem fazendo a tortura chinesa da gota d’água com o Sid Wilson, DJ do Slipknot. Há ali uma musicalidade bastante evidente, não soa como só barulho ou “antimúsica”. Ele ia passando de ideia musical em ideia musical, incorporando uma certa primitividade com a percussão, contrastada diretamente com a sensação de futurismo meio Jetsons das notas curtas dos sintetizadores, embalado pelo peso que vinha quando assumia os graves e pegava seu baixo. Depois de pouco mais de meia hora, desligou todos os aparatos e agradeceu o público, rapidamente desmontando o palco e indo para o fundo da casa, onde tinha um estande de merchandise.
Rodolfo (teclados), Queco (guitarra), Vitor (bateria) e Pedro (flauta, baixo, animais de fazenda de borracha) subiram no palco por volta das 22h e, com um espírito bastante prog e jazz, começaram com uma jam descontraída que eventualmente se tornou Ave-Bala, frenética abertura de Holoceno (2021). Foi nessa linha que o show do Papangu seguiu: tudo parecia uma grande jam, amigos tocando música. Não havia setlist definido, eles trocavam olhares e as músicas surgiam. Este foi também um dos grandes atrativos da turnê, cada um dos três shows na capital paulista ofereceu uma experiência única, diferente. Um dos poucos constantes entre essas apresentações foi justamente o início dos shows, sempre com as mesmas três músicas. Ave-Bala abriu as portas para a sinistra Água Branca, que é uma das mais “viajantes” do grupo, passando aquela sensação de incerteza e esquisitice generalizada que só o rock progressivo consegue.
Para a poderosa São Francisco foram convocados os talentos de Raí Accioly, terceiro guitarrista e detentor de um gutural poderoso, que gravou todas as músicas, mas no show tocou só algumas. Fora ele, também estavam jogando com mais um a menos: Marco Mayer, baixista e idealizador da banda, que não conseguiu comparecer aos shows no Brasil, foi substituído pelo tão genial quanto Pedro Francisco. Mantendo o caos vivo, Vitor, o baterista, demonstrou suas habilidades com um solo absurdo, que foi seguido por um breve solo de baixo que acabou se tornando mais uma jam. Chegou um momento em que Rodolfo Salgueiro, vocalista e tecladista, disse que queria ensinar uma música para o público, e começou com seu triângulo em mãos: “Eu quero me trepar no pé de coco / eu quero me trepar pra tirar coco”. Rapidamente a La Iglesia inteira estava ecoando o clássico Pra Tirar Coco, de Messias Holanda a plenos pulmões, injetando uma dose de forró nesse show de metal.
Foi por meio de mais uma brincadeira musical que começou Bacia das Almas, que seria a última de Holoceno até a parte final do show. Algo que não deu para ignorar de forma alguma foi a felicidade dos integrantes no palco. Era evidente que estavam completamente confortáveis ministrando o culto na Iglesia, felizes, sempre tocando com um sorriso de orelha a orelha estampado no rosto, o que tornava a energia da apresentação em algo leve, tranquilo. Parecia muito mais um encontro entre amigos do que as performances super produzidas que beiram o robótico. Era algo muito autêntico. Falando em autenticidade, foi contemplado também Lampião Rei, trabalho mais recente, praticamente na íntegra, constituindo a segunda parte do show. A primeira do novo álbum foi Boitatá (Incidente na Pia Batismal da Capela de Bom Jesus dos Aflitos) que não só tem um nome curtinho, como também tem uma linha de baixo absolutamente feroz e mais uma amostra dos fortes vocais de Accioly.
A próxima foi Oferenda no Alguidar, primeiro single lançado no ciclo promocional do álbum, consequentemente, uma favorita dos fãs. Diferente de sua antecessora, Oferenda é bem mais calma, tranquila, mas não deixa de ser interessante – foram alguns minutos para os fãs respirarem. Não deixando a peteca cair, veio a saga de Acende a Luz, sendo a primeira parte a plácida Alquimia e a segunda e terceira as eletrizantes O Encandeio e Sagüatimbó respectivamente. Falando em favoritas dos fãs, era a vez de Maracutaia, verdadeira joia na coroa – ou melhor, estrela no chapéu de cangaceiro – de Lampião Rei. Mesclando uma brasilidade inegável com riffs progressivos dançantes e um final nada esperado, ela tem de tudo. Tanto no Knotfest quanto na apresentação que fizeram na Porta Maldita, o genial João Kombi, vocalista do Test e agora artista solo, participou da execução desta faixa, fazendo os vocais extremos que ele mesmo gravou, mas desta vez os encarregados foram Queco e Raí. Não dá para falar de Maracutaia sem falar da versatilidade de Pedro Francisco, que no final toca uma vasta gama de instrumentos, incluindo até galinhas e porcos de borracha. Esta música é um show à parte. Posteriormente, conversaram rapidamente com os fãs, pedindo para que comprassem merchandise para que tivessem mais espaço dentro do carro, pois estavam fazendo a turnê inteira por terra.
Quem não tem cão, caça com gato, e o Papangu, que não teve Kombi, contou com outra participação, sendo ela de Benoit Crauste, saxofonista que, junto de Pedro Francisco, integra a Itiberê Orquestra Família da França. Ele tocou duas músicas, Sol Raiar (Caminhando na Manhã Bonita) e a instrumental Ruínas. Para Sol Raiar, Rodolfo decidiu ensinar aos fãs uma maneira alternativa de cantar a introdução, que geralmente tem apenas uma melodia no teclado. No ritmo, cantou “ê, saruê, saruê, saruê, gabiru, gabiru, gabiru, saruê”. Sendo uma obra sem letra de 8 minutos, Ruínas foi terra fértil para diversos solos de Benoit, que certamente deixaram o público de cara. Voltando rapidamente para Holoceno, passaram por Lobisomem, Terra Arrasada e a própria faixa-título. Como Rodolfo disse, Terra foi uma das primeiras músicas da banda, e foi sempre ancorada na resistência, por isso seria dedicada ao MST.
Para fechar esta noite incrível, foi escolhida a épica Rito de Coroação, que nas prensagens em LP de Lampião é dividida em quatro partes, a primeira sendo um aglomerado que lembra aquela época do Prince, Caboclinho, Morte e Transfiguração e Hospício. Com mais de 8 minutos de duração, ela demonstra exatamente a que veio o Papangu, passando por todas suas facetas sonoras, do metal ao prog rock e à música nordestina, como solos incríveis de baixo, teclado e um riffzinho chiclete que não sai da cabeça por nada. Como se os fãs já não estivessem em êxtase o bastante, na parte final da faixa, Vitor levantou da bateria, pegou alguns chocalhos, se enfileirou junto ao resto dos integrantes na ponta do palco, e saíram pela casa fazendo um trenzinho, em meio ao público, com apenas Rodolfo permanecendo em seu teclado. Estes últimos 10 minutos de show resumiram bem o que foi a turnê Engaiolada até então, muito mais que apenas uma excursão pelo Brasil, mas uma chance de uma banda que está prestes a ser tornar um dos maiores nomes da música nacional se conectar de forma bastante pessoal com sua audiência, mostrando que por trás dos músicos, por trás dos riffs e das batidas, existem seis seres humanos que querem mostrar sua arte.
Agora que conseguiram recuperar boa parte do prejuízo do assalto que ocorreu na última turnê, estão 100% focados em arrecadar fundos para a tour europeia que irá ocorrer agora em agosto. Quando disse que estavam prestes a estourar, não estava exagerando de maneira alguma. Uma de suas apresentações será no Arctangent Festival, evento que reúne os maiores nomes da música progressiva. Alguns dos outros nomes que farão parte da edição deste ano são Wardruna, Leprous, Melvins, Karnivool, Green Lung e Tesseract – só a nata. Mesmo com isso, o Papangu segue fazendo shows incríveis, mantendo a humildade, e tanto na música quanto nos shows, segue firmemente ligado às suas raízes. Foram três datas em São Paulo em três semanas, o que me deixou perguntando: agora vou fazer o que de quinta à noite? Já podem marcar a próxima vinda.
Papangu setlist:
Ave-Bala
Água Branca
São Francisco
Solo de bateria
Jam
Para Tirar Coco
Bacia das Almas
Boitatá (Incidente na Pia Batismal da Capela de Bom Jesus dos Aflitos)
Oferenda no Alguidar
Acende a Luz: I. Alquimia
Acende a Luz: II. O Encandeio/III. Sagüatimbó
Maracutaia
Sol Raiar (Caminhando na Manhã Bonita)
Ruínas
Lobisomem
Terra Arrasada
Holoceno
Rito de Coroação
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