Por Daniel Agapito
Fotos cedidas gentilmente por @pridiabr e Marcela Lorenzetti | @actualiity (Ego Kill Talent)
Dez anos. Este foi o tempo que os fãs do System of a Down tiveram que esperar para ver os armênio-americanos de volta no Brasil. 2017 viu uma turnê europeia um tanto extensa, contando com 21 apresentações em 14 países, mas depois disso praticamente estacionaram. Fazendo cada vez menos shows por ano, a possibilidade de ver o quarteto por aqui só diminuía, mas a fé do povo seguia inabalável e o famigerado “come to Brazil” comia solto. Vale destacar aquele vídeo que viralizou de um estádio esgotado cantando Chop Suey! antes do Bring Me the Horizon subir no palco em novembro. Como já era de se esperar, os boatos de show apareciam sempre, até mais que Korn e Metallica, que parece que estão em negociações perpétuas para tocar por aqui. No final do ano passado, veio uma faísca de esperança: em diversos pontos de ônibus em grandes capitais, as palavras “WAKE UP!” eram estampadas em caixa alta, acompanhadas de vários olhos mexendo freneticamente.
Dali para frente, foi o mais puro caos. O anúncio de 3 shows no Brasil (Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo) veio numa tarde de dia de semana, no finalzinho do ano, bem quando os recursos monetários do público em geral não estão na maior abundância, podemos dizer. Para enfartar os fãs, as vendas gerais começaram só 3 dias depois, mal deu tempo de marcar a cirurgia de remoção de rim. Quem esteve na fatídica fila da Eventim naquele dia 19 de dezembro ao meio dia lembra a guerra que foi. Seja por conta da fila virtual (conceito inventado no quinto dos infernos pelo próprio mochila de criança) que caiu algumas vezes, fazendo jus ao nome da banda, o preço absurdo do ingressos, com a pista premium chegando na casa dos 4 dígitos ou o fato de que os ingressos duraram um piscar de olhos, não surpreenderia se uma das maiores causas de estresse pós-traumático fosse justamente este evento. Vendo a oportunidade, a 30e anunciou uma segunda data no Allianz Parque poucas horas depois, com as vendas iniciadas no mesmo dia, às 14h. A história se repetiu, os ingressos se esgotaram em pouquíssimo tempo.
As redes sociais estavam recheadas de reclamações de fãs que não haviam conseguido garantir um lugar no antigo Palestra Itália, e os olhos dos revendedores brilhavam. Parecia que tudo iria acabar ali, até o dia 11 de fevereiro, quando uma terceira data foi anunciada, mas desta vez, no Autódromo de Interlagos, espaço estarrecedoramente maior do que o estádio. De lá até o mês de maio, parecia ser impossível escapar dos armênios, independente da grande quantidade de shows internacionais de renome que ocorreriam antes. Havia trens da CPTM estampados com a arte da turnê, camisetas “alternativas” nos mercados online, o Brasil inteiro estava “systemado”. A Wake Up! South America Stadium Tour (com o divisivo Ego Kill Talent) começou pela Colômbia, e não demorou para os vídeos das rodas insanas tomarem conta da internet. O setlist também causou um estrondo, com raridades que não haviam sido tocadas há muito tempo sendo desenterradas.
Serj Tankian e cia. seguiram para seu primeiro show no Peru e o caos foi ainda maior, com gente em cima até dos banheiros químicos. Em termos de repertório, mais raridades, como 36, por exemplo, que não havia aparecido nos shows desde março de 2002, antes mesmo de ser oficialmente lançada. Além disso, 11 músicas que não haviam sido tocadas anteriormente compuseram a lista da noite. Seguiram para o Chile, que muitos dizem ter o melhor público do mundo nos últimos tempos, e eles mostraram que realmente são animados, com rodas absurdas, sinalizadores a torto e a direito. O mesmo se repetiu na Argentina, mas nada conseguiria prepará-los para o que seriam os 5 shows no Brasil. O primeiro foi no começo de maio em Curitiba – estive lá e posso falar com propriedade que foi uma experiência única, uma conexão entre fãs e banda realmente diferenciada. Aliás, foi a primeira data onde houve uma ação da gama de projetos Wake Up, que começou em São Paulo. Você, caro leitor, deve ter visto vídeos pela internet a bandeira da Armênia sendo formada por luzes coloridas no público. Mesmo tendo teoricamente acontecido na capital peruana, foi em terras paranaenses que a ideia realmente entrou em evidência. Dois dias depois, estavam no Engenhão e foi mais uma aula, com aproximadamente 65 mil pessoas presentes.
A ROADIE CREW infelizmente não teve seu credenciamento liberado para a primeira data na terra da garoa, mas baseado em relatos de fãs que compareceram, vídeos da noite e o resto da turnê em si, uma coisa é certeza: a performance foi histórica. O mesmo se aplica para as duas datas seguintes, e nestas estivemos lá. A seguir, você confere tudo o que rolou no show do System of A Down no Autódromo de Interlagos. Para ler a cobertura da 2° noite da banda no Allianz Parque, que aconteceu em 11 de maio, clique no link abaixo.
LEIA TAMBÉM: SYSTEM OF A DOWN – SÃO PAULO (SP – 2° NOITE)
As portas do Autódromo José Carlos Pace seriam abertas ainda de tarde, por volta das 15h, e logo de cara, a quantidade absurda de fãs que estavam lá para presenciar o grande final da turnê do System era aparente. Vendedores de camisetas e copos “alternativos” aos oficiais já tomavam as ruas perto do local, e a fila para entrar era gigantesca, considerando que era uma quarta-feira, dia útil, vida normal. Àquela altura, só chegar na região já era um desafio: ruas travadas por milhares e milhares de metaleiros, trens da Linha 9, que levam ao autódromo, muito mais congestionados do que o normal (algo que já era esperado, chegaram até a postergar os horários do metrô na saída). Após enfrentar as diferentes camadas de revista que aconteciam na entrada, os fãs se depararam com uma longa caminhada até o palco, movimento que, por definição, quase se encaixa como romaria: “Peregrinação que se faz a uma igreja ou a um lugar santo, por devoção ou arraigada crença religiosa, ou ainda para cumprir algum voto”.
A extensa pista já se encontrava preenchida praticamente até o meio quando os paulistas da Ego Kill Talent tomaram o palco, daquele jeito que quem estava mais para a frente não se mexia mais nem se quisesse. Já tendo feito a abertura de diversos outros grandes shows produzidos não só pela 30e (Linkin Park, Knotfest, Evanescence, Metallica, Foo Fighters) e acompanhado os armênio-americanos em todas as outras 8 datas de sua turnê, dentro e fora do Brasil, os fãs paulistanos já haviam se acostumado a vê-los em diversos shows grandes, com piadas como “tranquei o carro com a chave dentro, a Ego Kill Talent deve abrir” sendo frequentes pelas redes sociais. Com o relógio tendo dado sua sexta badalada, We Move as One abria os serviços, e apesar da energia da banda, querendo claramente entregar mais uma apresentação de qualidade para fechar aquela sequência com chave de ouro, o público estava – mais uma vez – completamente morno. As coisas melhoraram ligeiramente com Lifeporn, mas a primeira resposta significativa viria apenas quando Emmily Barreto, a vocalista, soltou um “boa noite, galera”, antes de prosseguirem com Call Us by Her Name, faixa-título do primeiro lançamento com a atual vocalista. Vale destacar, aliás, sua presença de palco, que mesmo com o clima aparente de “jogo fora de casa” demonstrava uma naturalidade incrível em frente às pessoas, interagindo bastante tanto com a banda quanto com os fãs.
“Chegou a hora do show que é muito especial. Nesses três shows de São Paulo ‘tamo’ chamando uns amigos da banda, quero que vocês recebam com muito barulho o riffeiro mais foda do Brasil, Jean Patton!” Na primeira data, Chaene da Gama, do Black Pantera, havia dado uma força nos graves, aproveitando para apresentar parte de Fogo nos Racistas e levando o público à loucura; já no domingo, foi a vez da ex-Crypta Jessica di Falchi. Para fechar a tríade de convidados, o atual guitarrista do Korzus não destoou muito do molde estabelecido pelos que o precederam, tocando Never Fading Light (com direito a um breve solo) e Reflecting Love. Quem já viu Jean no palco sabe bem o que esperar: uma energia inesgotável! O homem bate cabeça como se estivesse tentando jogar o pescoço longe. “Último dia da turnê, sei que vocês estão animados, vamos aí!” Não dá para dizer que o público não estava animado, mas era óbvio que a animação era única e exclusivamente para os headliners. A EKT é uma banda de qualidade, mas considerando que muitos dos espectadores que estavam lá estiveram presentes também em outras datas, havia ocorrido uma saturação de Ego Kill Talent – e não por culpa deles, pode apostar que qualquer banda em uma posição similar faria o mesmo.
Justamente por isso, não tem muito o que falar do final do show, pois foi igual o último, rolou aquela “limpação de janela coletiva” em When it Comes, São Paulo fingiu que era a capital do Tocantins em Just for the Likes, quando Emmily puxou palmas da audiência (que àquela altura já se assemelhava a um mar de gente, para todos os lados que você olhava, via uma infinidade de cabeças) e fecharam com Finding Freedom e Last Ride, com a banda demonstrando bastante emoção ao agradecer ao SOAD e à sua equipe antes da última faixa.
Pontualmente meia hora depois da saída da primeira banda, o palco era banhado por um véu de luzes vermelhas para receber o AFI (A Fire Inside), diretamente da Califórnia, fazendo uma única apresentação na América Latina. Até então, nenhuma data no Brasil havia contado com bandas de abertura fora a própria EKT, enquanto em outros países, se fosse o caso, o terceiro era sempre algum grupo local, então a confusão dos fãs quando esta data extra foi anunciada foi completamente justificável. Com um logo bastante simples, a presença deles até passou batido para vários. Seu show começou com uma breve faixa introdutória pelo sistema de PA, antes de Girl’s Not Grey dar o pontapé inicial “pra valer”. Assim como durante a banda anterior, o público estava praticamente morto, mas por uma razão completamente diferente: o som deles não tem nada a ver com o System. Transitando entre um punk suave e o post-hardcore com um toque gótico (para os “tiozões”, sim, emo), era claro que havia alguns admiradores devotos deles presentes, mas era aquela coisa que quem gosta, gosta muito, já quem não gosta… Davey Havok, o vocalista, esbanjava uma presença de palco elétrica, mas o técnico de som parecia ter algo contra sua pessoa, seu som estava completamente enterrado sob o resto do grupo.
End Transmission e a clássica cult Love Like Winter passaram, servindo para esquentar um pouco quem estava lá. As primeiras palavras do vocalista vieram logo depois: “Boa noite, São Paulo! Nós somos o AFI.” Apesar de terem mais de 30 anos de atividade e uma base de fãs considerável no país, esta era apenas a segunda passagem deles por terras tupiniquins, tendo tocado no Lollapalooza mais de 10 anos antes, e era óbvio que Havok e companhia gostavam do Brasil, queriam tocar aqui. Depois de Begging for Trouble, Davey revelou que aquela noite era especial por outro motivo: além do show, era aniversário de Hunter Burgan, baixista que os acompanha desde 1997. Já mais envolvido na apresentação, o público rapidamente cantou parabéns para o baixista, provavelmente a cantoria mais alta que rolou com eles no palco. O aniversariante chegou a agradecer, soltando um sorriso de orelha a orelha e um singelo “queria saber falar português”. Beautiful Thieves, por sua vez, viu um lado mais teatral dele aflorar, cantando ajoelhado no chão, chegando a quase se jogar. As emoções seguiram firmemente no controle com The Leaving Song Pt. II e seu refrão choroso que repete as palavras “break down”.
O próximo momento notável veio antes de So Beneath You, uma das faixas mais novas do repertório, postergada por conta de uma briga no meio da pista, que chegou a surpreender o frontman, que já estava para lá de confuso: “São Paulo, tudo bem aí? Olha, que legal, uma bandeira com o nosso logo! Vocês estão vendo uma briga rolar? Acho que não é nada muito violento, só um desentendimento, nada muito violento.” O próprio Davey Havok reconheceu que não estavam com os fãs a favor deles: “Sei que a grande maioria de vocês nunca ouviu AFI, fico feliz que estejam conferindo nosso som. Se você está curtindo, muito obrigado, caso contrário, só temos mais seis músicas. Para os poucos que nos conhecem, muito obrigado pela presença.” Não tem como negar que as músicas eram muito parecidas, mas por serem relativamente rápidas, o show ficava dinâmico, mal dava tempo de cansar de uma faixa ou outra. Em termos de repertório, equilibraram bem a nostalgia trazida por álbuns mais antigos, como Sing the Sorrow (2003), Crash Love (2009) e Decemberunderground (2006), mas não deixaram de expor seu catálogo mais recente, representando seu último lançamento, Bodies, com Escape from Los Angeles (além da já citada Begging).
Para o último bloco, o frontman parecia estar tomado por uma energia diferente, cantando com uma força que até então não havia exibido (e não era só para tentar compensar a qualidade de som, que até então não havia melhorado). I Hope You Suffer, por exemplo, cujo título realmente canaliza a opinião de muitos em relação à banda, foi cantada majoritariamente do chão, enquanto The Days of the Phoenix, única representante da época mais hardcore/horror punk do A Fire Inside, viu Havok descer do palco e ficar no “pit” dos fotógrafos (recuo entre palco e pista). Terminou a seguinte junto dos fãs, na barricada do pit. Mantendo o astral alto, passaram para Silver and Cold, destaque de Sing the Sorrow, e nos momentos finais, Davey achou que seria uma ótima ideia arremessar seu microfone, logo antes da última música. Como esperado, o inocente aparelho de áudio fez tal qual o Santos FC há algum tempo e caiu, ocasionando uma onda de choque que pegou fundo no coração de todos os técnicos de áudio do estado de São Paulo.
Com microfone ou sem, as primeiras notas de baixo da icônica Miss Murder, conhecida por sua inclusão no terceiro Guitar Hero, ecoaram pelo autódromo, e pela primeira vez os fãs se animaram de verdade. Um mar de celulares foi ao ar, e logo quando viria o momento catártico dos primeiros versos… cadê a voz? Alguns membros do público até estavam cantando “junto”, mas não eram todos que conheciam, então este começo instrumental inesperado deixou um climão esquisito, que de certa forma definiu bem como foi o show: na hora em que ia esquentar, faltou algo. Havok trocou o microfone e conseguiu cantar, mas como já disse, faltou algo. A performance não foi ruim, a banda é boa, tem um som de qualidade, mas seu público não é o mesmo do System, mereciam um show solo ou tocar em algum Lollapalooza da vida…
O início da apresentação dos headliners estava marcada para às 21h, horário até decente considerando que era uma quarta-feira e que os horários do metrô haviam sido estendido no dia do show. Porém, seguindo um padrão que nós, fãs brasileiros, já estamos bem acostumados, houve o “atraso combinado” – uma falta de respeito absurda com os consumidores, mas algo que não entra no escopo da matéria. A versão de Marilyn Manson da clássica Tainted Love (Soft Cell) se tornava Take a Look Around (Limp Bizkit) enquanto as luzes do palco eram desligadas e o povo, para lá de inquieto, começava: “System, System, System”. Qualquer movimentação mínima no palco era celebrada como se fosse uma vitória na final da copa do mundo, a ponto de membros da equipe da banda subirem no palco para filmar a reação do público. Já sem opções do que fazer, os fãs decidiram brincar de sombras no telão, fazendo cachorrinhos bonitinhos, acompanhados de alguns dedos do meio, para não perder o glamour. Com Auslander do Rammstein rolando, os qutro integrantes foram avistados se dirigindo ao palco, e o local entrou em erupção, com gritos ensurdecedores vindos da pista. Quinze minutos após o horário marcado (vale lembrar que era quarta-feira), as luzes do palco se apagaram e começou o tema de abertura de “Um Estranho no Ninho” (1975), com um mar de celulares indo ao ar para registrar o momento. O que parecia impossível estava finalmente acontecendo.
Aqueles fãs que acompanham os repertórios da banda pela internet perceberam rapidamente que o System of A Down estava alternando entre dois setlists, então a escolha de X, que havia sido a abertura do último show, surpreendeu os vigias de set. Logo de cara, o caos havia sido profundamente instaurado, dezenas de milhares de pessoas pulavam junto, cantavam a plenos pulmões. Você não tinha a opção de simplesmente não pular, não entrar na roda, o mosh chegava em você, gostasse ou não. O chão parecia que tremia, não tem como fazer jus à sensação de estar lá apenas com palavras. Fundindo os setlists, seguiram com Attack, e foi ali que apareceram os primeiros sinalizadores, banhando o autódromo com uma luz vermelha forte, dando um clima de inferno na terra, jogo da série B. O alvoroço nestas primeiras músicas havia sido tanto que parte da grade na frente do palco havia cedido.
“Este é o último ‘main event’ da turnê. Somos o System of a Down e isso é rock and roll estilo System of a Down.” Daron Malakian havia falado uma frase parecida com essa durante todos os shows, mas ouvir “o último da turnê” era diferente, era um lembrete de que aquela semana completamente caótica, cheia de shows, estava acabando e a vida normal iria voltar. Suite Pee foi devidamente absurda, novamente marcada por rodas infinitas – o público daquela noite realmente competiu com os carros de Fórmula 1 no quesito de dar voltas. John Dolmayan nem precisou bater mais de uma vez na bateria para os fãs identificarem Prison Song de maneira quase instantânea. Na primeira baquetada, a galera já explodiu, o lugar aparentava estar pegando fogo. Quem diz que o metal é violento, coisa do diabo etc., claramente não conseguiria compreender a energia que foi Violent Pornography cantada por mais de 50 mil pessoas. Só em um show do SOAD seria aceitável gritar “é uma pornografia violenta, enforcar minas e sodomia, o tipo de merda que você vê na TV” enquanto você gira em círculos batendo em desconhecidos – e é incrível. Aerials serviu para dar uma acalmada nas rodas, mas foi algo muito emocionante. A música já é linda, com um coro daquele tamanho cantando em uníssono ninguém consegue explicar a energia do momento. No finalzinho, Daron até soltou um “sing it”, como se boa parte dos presentes já não estivesse deixando a vida na cantoria.
Com um timbre de guitarra afogado por diversos efeitos, Mr. Jack trouxe uma energia mística e etérea, era como se os fãs estivessem sendo encantados como serpentes por flautistas. Shavo (que estava com parte da cara pintada, simulando o Kratos da franquia “God of War”, remetendo aos seus shows nos anos 2000) estava tocando com tanto foco que parecia estar em transe, enquanto John exibia aquela sua precisão robótica de sempre. Como já vem rolando em boa parte de seus shows, durante o breakdown foi emendada a não-lançada Hezze, faixa “perdida” que teoricamente faria parte de Hypnotize, mas até o presente momento só existe em registros ao vivo. Seguindo a ordem do subestimadíssimo Steal this Album, veio a divertida I-E-A-I-A-I-O, claramente um dos pontos altos para os fãs. Daron até demorou um pouco mais que o normal para começar a cantar porque o público fazia com que não fosse preciso: cantavam tudo. Tankian estava um pouco atrás nas letras, mas era completamente compreensível, a música não é das mais lentas e o homem já tem quase 60 anos.
Genocidal Humanoidz foi a única faixa da era “moderna” da banda a ser contemplada (não que haja muitas opções, era essa ou Protect the Land), e a reação do público foi uma prova concreta de que um álbum novo do System iria parar a indústria musical de um jeito nunca visto antes. Não custa sonhar com músicas novas, mas dados todos os conflitos internos da banda, pedir isso a eles é que nem pedir que o Palmeiras ganhe o mundial de clubes… A.D.D. nos levou de volta para o CD de 2003, e mesmo vindo do lado B do trabalho que é amplamente considerado a ovelha negra de sua discografia, as pessoas rodavam e rodavam sem parar. Serj estava com a mesma “roupa de ir na padaria” que usou nos shows anteriores, mas desta vez, algo estava diferente: não ficou com as mãos no bolso, nem se isolava do resto da banda num canto do palco – não estava radiante de felicidade, mas não estava com aquela cara de orifício corrugado. Vieram 36, Pictures e Highway Song, uma pedrada atrás da outra, sem tempo para respirar. E é isso faz os shows de mais de duas horas parecerem passar em dois minutos.
“Preciso que vocês façam mais barulho! Não é o bastante, mais alto! Mais alto! Falei pra fazer mais barulho, porra!” Com uns lasers que fizeram parecer show do Alok, pularam para Toxicity (recentemente derrubado do Spotify) com Needles, seguida da infelizmente atemporal Deer Dance – letras como “a guerra encara nossas caras em todo canto do planeta” nunca foram tão verdadeiras. Apesar do conteúdo lírico, o que se destaca nesta última é a brutalidade como o próprio guitarrista mostrou, batendo cabeça tão forte que seu chapéu saiu voando. “Acho que perdi um pouco da minha voz durante essa turnê”, disse Malakian, completamente rouco, “mas ainda tentarei cantar essa para vocês.” Soldier Side é simplesmente o suprassumo da depressão, capaz de emocionar até os tiozões do rock mais apáticos, e com um coro daquele tamanho, quem nem pensou em lacrimejar certamente já morreu por dentro. Os sinalizadores rolavam até na hora da sofrência, parecia que estavam competindo com show do Natiruts para ver quem tinha mais fumaça.
B.Y.O.B. não precisa nem de introdução, foi o mais puro caos – visto de cima, com a quantidade absurda de sinalizadores o autódromo devia ter mais ponto vermelho do que testa de adolescente. Se as pessoas já estavam cantando a plenos pulmões antes, nesta realmente soltaram a voz. Acabou o caos e John já partiu para o pandeirinho, iniciando Radio/Video. O público não parava, pegou o embalo da anterior e seguiu pulando e cantando, uma farra só; a energia era a mesma desde o primeiro segundo de show. Bubbles viu a banda toda soltar um lado mais zoeiro. Serj passava pelo palco dando o microfone aos outros integrantes e rachando de rir com os barulhos que saíam. Quando ofereceu a John, por exemplo, geralmente um homem de pouquíssimas palavras, o responsável pelas baquetas soltou um simples “fuck you” e o frontman foi ao chão, simplesmente desmoronou. Mais uma vez juntando faixas de Steal, veio Dreaming, porém apenas seu breakdown, daqueles para bater cabeça tão forte que desloca até o quadril.
Hypnotize levou todos os espectadores junto mais uma vez, num momento verdadeiramente lindo, com meio mundo batendo palmas no ritmo da faixa-título do último álbum, só parando nos primeiros versos de ATWA. “Eu não sinto mais nada, você não sente mais nada, eu e você não sentimos mais merda nenhuma. Às vezes, gosto de te vigiar. Vocês gostam de ser vigiados por mim? Sou uma aberração, um puta de um cuzão, mas estou te vigiando.” Mesmo com Tankian sendo o vocalista, como já era de se esperar, boa parte das interações diretas com o público vieram do guitarrista. Falar que os fãs pularam em Bounce seria realmente um desserviço: eles causaram abalos sísmicos. As rodas se reposicionavam constantemente, fazendo o local parecer uma estampa psicodélica vista de cima. Passadas Suggestions e Psycho, o vocalista reconheceu o ritmo absurdo do show: “Não paramos por porra nenhuma, né? Não mesmo!” E não pararam, foram logo para seu maior hit, a icônica Chop Suey!, que ateou fogo (literalmente) no autódromo, já que a quantidade de sinalizadores estava realmente fora de mão. Se a revista na porta estava tão exigente, só podemos imaginar onde os fãs tiveram que enfiar os sinalizadores – ficam aqui meus parabéns para os guerreiros que abriram a roda (dos dois jeitos).
Daron abriu Lost in Hollywood com uma declaração de amor sincera à Pauliceia Desvairada em que vivemos: “São Paulo, vocês são os melhores” – certeza que ele fala isso para todas… Na hora em que começou aquela “limpação de janela” coletiva, a parte bem melosa da música, o guitarrista se dirigiu à audiência: “Balancem as mãos, você também, Jesus.” SOAD no Brasil era algo tão incrível que até o filho Dele nos agraciou com sua presença. Ainda na depressão pura, Lonely Day começou de maneira inesperada, com Careless Whisper, de George Michael, antes de completamente despedaçar os corações de quem estava lá. Quando digo que as mais de 50 mil pessoas presentes estavam cantando em uníssono, não é exagero. Tem algo tão mágico ver este tanto de união para uma música tão triste. A aura angustiante não foi tão duradoura assim, pois Streamline e sua introdução toda troncha quebraram este clima rapidamente. Mind seguiu na mesma linha, completamente esquisita, irregular. No palco, os membros estavam dando a vida, Serj terminou a música quase no chão, Shavo tremia todo e Daron soltava uns gritos das profundezas de sua alma. John é exceção: o cara é um androide, não demonstra emoção alguma.
Spiders veio mais devagar, boa pra respirar um pouquinho, mas sem baixar o clima. Serj estava rodopiando pelo palco, em êxtase, refletindo perfeitamente o sentimento dos milhares e milhares de fanáticos que o apreciavam naquela noite. Aquele canto que todo artista gringo adora, “olê, olê olê olê, System, System”, se fez presente, enquanto Daron respondeu gritando “Brasil, Brasil, Brasil”. Logo depois, cortou a farra com o riff inicial de Forest, cujo refrão foi cantado inteiramente pelo público visto o alvoroço que estava acontecendo. Na hora do interlúdio instrumental, ficaram os três votados para John, brincando entre si, sorrindo. Será que poderíamos finalmente ver um System of a Down sem treta?
“Gostaria de tirar um tempinho para dedicar essa próxima para toda nossa equipe de turnê. Eles que fazem o show acontecer. Se eles não tivessem montado o palco, afinado as guitarras, montado a bateria… também gostaria de agradecer nosso time de segurança que nos deixou sãos e salvos por toda a tour, toda a galera do Velvet Hammer management, o produtor que arquitetou esta gira toda, os seguranças das casas – vejo algumas pessoas sendo puxadas das rodas meio machucadas, não queremos ver nossos fãs assim.” O guitarrista não conseguia esconder sua emoção, estava realmente chorando durante seu discurso. Antes de começar Cigaro, um grito baixinho de “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu!” se iniciou, parando apenas quando Daron gritou que seu órgão reprodutor masculino era maior do que todos os outros. Reflexivo, comentou sobre a natureza da faixa após os últimos acordes: “Percebem quão idiota essa música é? Ela é muito idiota, mas sou um idiota também.”
O pontapé inicial do último bloco do show começou com War? (já a 35ª a ser executada até então). Ela é uma das que melhor define o som do primeiro álbum, brutal e esquisita, equilibrando momentos rápidos com seções mais cadenciadas, embrulhada de letras politicamente carregadas. “Pois você precisa entrar numa sala para destruí-la, nós lutaremos contra os pagãos, nós lutaremos contra os pagãos. Que música brava! Por que estamos tão bravos quando podemos ser tão bonitos e cantar canções tão bonitas? Vocês gostariam de ouvir uma canção bonita? Porque estou fazendo a vozinha do King Diamond?” A música bonita em questão era Roulette, realmente daquelas para arrancar algumas lágrimas, cantar o refrão abraçadinho com algum desconhecido no mosh. Como se os integrantes precisassem de alguma apresentação, Daron e Serj fizeram questão de introduzir um por um, mantendo um brilho no olho. Repito a pergunta: será que veremos um System of a Down sem brigas?
Infelizmente, tudo que é bom tem que chegar ao fim, e as icônicas notas limpas da introdução de Toxicity sinalizaram o começo do fim. Independente disso, o astral seguia altíssimo, com o baixista até se enrolando em uma bandeira do Brasil. O caos havia sido instaurado completamente, a ponto de o vocalista repetir algumas vezes “more wood for their fires” (mais lenha para suas fogueiras), em alusão aos sinalizadores. Enfim, havia chegado aquela hora que todo mundo já viu na internet e boa parte sonhou em participar, “everybody spinning around”. Daron até brincou com o fato de estarem tocando em um autódromo, dizendo que queriam que os fãs dessem “mais voltas que os carros”, e foi exatamente isso que aconteceu. Conforme disse a própria banda, Sugar foi a última chance de “queimar a porra toda”, e dito e feito, queimaram a porra toda. Verdadeiramente, você não tinha como ficar parado: ou pulava junto à massa de milhares de headbangers ou morria do mesmo jeito que Mufasa no “Rei Leão”.
O show já havia acabado, mas o caos foi bem além. Não só era praticamente impossível sair do autódromo se você já não estivesse perto do fundo, este que vos escreve estava relativamente próximo do palco e ficou uma hora plantado na passarela de entrada, tentando aproximar da saída. Até consegui sair, mas este não foi o caso de todos os espectadores do evento, dado que após certo horário a organização simplesmente fechou o autódromo – que ainda estava com uma boa quantidade de fãs. Para sair, tiveram que apelar para um instinto neandertal e simplesmente derrubar os muros de metal colocados pela produção para conseguir pensar em sair do local. No caso de quem conseguiu sair, a extensão do horário do metrô até funcionou para aqueles que saíram de maneira relativamente rápida. Já para aqueles que demoraram um pouco mais, tiveram que gastar um rim em um uber e enfrentar um trânsito absurdo, visto que as ruas perto do local estavam fechadas. De acordo com relatos de fãs PCD, eles ficaram ilhados na área reservada para eles até a madrugada, um descuido gigantesco da produção.
Apesar disso, não tem como dizer que aquela noite não foi histórica. De acordo com informações da produção, foram 70 mil pessoas no Autódromo, mas não seria surpresa se houvesse umas 10 mil a mais. Em termos de quantidade de músicas, foi o maior show da carreira do SOAD até então, contando com simplesmente 38 faixas, uma a mais do que tocaram na performance histórica que fizeram na Armênia em 2015. Com tudo que você leu até aqui, jogo a bola para você, leitor da RC, e te pergunto: tem como superar uma noite dessas? A espera valeu a pena, o caos da venda de ingressos não foi à toa, o “come to Brazil” funcionou. Além disso, vimos alguns momentos breves de união genuína entre a banda, algo que parecia ser impossível. O futuro está promissor para os fãs do System of a Down. Agora só nos resta esperar e ver o que vem aí para os armênio-americanos. Só peço encarecidamente para que não demorem mais 10 anos para voltar.
Setlist Ego Kill Talent
We Move as One
Lifeporn
Call Us by Her Name
Need No One to Dance
Never Fading Light (com Jean Patton)
Reflecting Love (com Jean Patton)
When it Comes
Just for the Likes
Finding Freedom
Last Ride
Setlist AFI
I Hope You Suffer (intro)
Girl’s Not Grey
End Transmission
Love Like Winter
The Leaving Song Pt. II
Beautiful Thieves
Death of the Party
The Conductor
So Beneath You
17 Crimes
Get Dark
Escape from Los Angeles
I Hope You Suffer
The Days of the Phoenix
Silver and Cold
Miss Murder
Setlist System of a Down
X
Attack
Suite-Pee
Prison Song
Violent Pornography
Aerials
Mr. Jack
I-E-A-I-A-I-O
Genocidal Humanoidz
A.D.D. (American Dream Denial)
36
Pictures
Highway Song
Needles
Deer Dance
Soldier Side – Intro
Soldier Side
B.Y.O.B.
Radio/Video
Bubbles
Dreaming
Hypnotize
ATWA
Bounce
Suggestions
Psycho
Chop Suey!
Lost in Hollywood
Lonely Day
Streamline
Mind
Spiders
Forest
Cigaro
War?
Roulette
Toxicity
Sugar
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