Tudo bem que os anos tocando o famigerado death metal sueco tenham ficado muito para trás na célebre carreira do multi-instrumentista Christofer Johnsson. Por mais que hoje a infame (e perfeita) tríade Of Darkness… (1991), Beyond Sanctorum (1992) e Symphony Masses: Ho Drakon Ho Megas (1993) seja apenas uma lembrança de uma época diferente, e uma parte já um tanto esquecida do repertório ao vivo do Therion, ela teve um valor inestimável: nos fez prestar atenção naquela (então) banda novata de Estocolmo (Suécia), e – pelo menos no caso deste que vos escreve – desenvolver uma relação tão estreita com a banda que jamais seria aplacada pelo gigantismo criativo que transformaria mil vezes a música do grupo no futuro. Sim, as décadas passaram, estamos mais velhos, a música mudou… O próprio mundo da música mudou como jamais imaginamos… Mas o Therion continua ali, nós continuamos fãs devotados, e era hora de ver se a banda ainda era capaz de proporcionar aquele espetáculo ao vivo que a manteve como um dos principais nomes do heavy metal sueco por três décadas.
Mas, se a primeira palavra que vinha à mente com o show do Therion era expectativa, a primeira que pulou dos lábios da maioria dos presentes no Carioca Club na sexta-feira, 11 de maio de 2018 foi “hein?”. Ah sim, para a maior parte dos presentes, houve uma surpresa. Felizmente, das mais agradáveis. A grande maioria da plateia estava lá para ver o Therion e o Cellar Darling, mas eis que a noite continha mais uma atração: a misteriosa banda britânica THE DEVIL. E que surpresa agradável, meus amigos. Praticantes de um som praticamente impossível de classificar (afinal de contas, o rótulo ‘atmospheric gothic metal’ mais confunde do que esclarece), eles estão ativos pelo menos desde 2012, ano em que apareceram para o mundo com dois singles e aquele que é até o momento o único álbum do grupo, The Devil.
Donos de uma imagem misteriosa (a identidade dos músicos permanece desconhecida), o grupo investe em músicas que incomodam e cativam ao mesmo tempo, uma mistura tão ímpar que gerou algo fantástico, muito bem completado pela postura de palco e efeitos que acompanham a estranha e bonita música que eles produzem. A movimentação pelo palco era mínima: desde que começaram a apresentação com Universe, tudo o que se via era uma postura absolutamente contida, nenhum movimento exagerado, nenhuma demonstração de emoção, como se a banda sequer fosse humana! E o efeito disso, aquele quarteto mascarado, de identidade desconhecida, tocando sob uma iluminação fria enquanto o telão exibia imagens de antigas investigações ufológicas foi algo que definitivamente causou uma impressão duradoura, que confesso, jamais deixarei para trás. Todos os riffs são simples e cativantes, e todas as músicas são instrumentais, mas diferente de tudo o que você já ouviu: elas são acompanhadas pelo áudio das reportagens, entrevistas e depoimentos que ficam sendo exibidos no telão durante as músicas, e novamente, o efeito é espetacular. Invasões alienígenas, guerras nucleares, devastação natural, o avanço da tecnologia cada vez mais avançada sobre uma humanidade cada vez menos preparada para interagir com ela, a música do The Devil nos coloca diante dos nossos piores medos, exige atenção. World of Sorrow, Alternative Dimensions, Devil & Mankind, Extinction Level Event… Um show que ficará na memória para sempre.
Logo depois, vinha o CELLAR DARLING, um grupo que já nasceu com status de grande em nosso país, e que arrastou boa parte do público presente no Carioca Club. A banda, que atribuiu para si o rótulo de ‘new wave of folk rock’ (muito apropriado, por sinal), nasceu há pouquíssimo tempo, em 2016, mas carrega em seu D.N.A. a marca de uma das mais bem sucedidas bandas suíças de todos os tempos, o Eluveitie. Caso o leitor desconheça a história, o Cellar Darling é a banda formada por três ex-membros do Eluveitie, a vocalista Anna Murphy, o guitarrista/baixista Ivo Henzi e o baterista Merlin Sutter. O disco de estreia do trio, This Is The Sound (2017) recebeu calorosa acolhida em todo o mundo, e no Brasil não foi diferente. Ou seja, era questão de tempo para o grupo pintar em nossos palcos, e a hora da estreia em São Paulo havia, enfim, chegado.
O início não poderia ser mais emblemático: Black Moon, uma das faixas do debut que contam com clipe oficial. A acolhida foi gigantesca, mas era notório que Anna Murphy era a mais celebrada, o que se justifica com toda a empatia que ela demonstrava com o público. A voz segura – talento que é um velho conhecido de todos nós – foi cada vez mais enfeitiçando o público, que já na segunda música, Hullaballoo, parecia em transe eufórico. Claro, não era uma noite propícia para ‘circle pits’, mas ‘rodinhas’ de dança celta se abriam na plateia, aplausos irrompiam cada vez mais eufóricos, e todos ali pareciam conhecer cada palavra das canções do Cellar Darling. Um espetáculo à parte, que faz fácil entender a razão de tantas bandas elogiarem as plateias brasileiras.
The Hermit contou com um dos espetáculos mais bonitos da noite. Enquanto apenas o instrumental seguia seu caminho, o público gritava com gana e força o tradicional ‘hey hey’, que logo se transformou em ‘lonesome soul, where did you go?’, primeiros versos da canção, o que arrancou discretas lágrimas dos olhos da vocalista. Sob a intensa tempestade de aplausos que sucedeu a canção, Anna comentou: “desde que montamos a banda, nós esperávamos por este momento, esperávamos tocar no Brasil. Este momento chegou, e estamos muito gratos por estarem aqui nesta noite”. Os aplausos protocolares e gritos de incentivo da plateia se transformaram em convulsões nas palavras seguintes da vocalista, já que denunciavam a música que viria na sequência: “nós somos contadores de histórias. A nossa música conta histórias, e a próxima história é sobre uma outra época, e sobre uma montanha coberta de gelo…”. Antes que ela terminasse de apresentar Avalanche, o estrago já estava feito, o público estava conquistado. Do primeiro verso ao simples e contagiante refrão, a noite parecia ganha para todos os presentes, público e banda. Starcrusher, Redemption, e o final, com Challenge. Uma bela estreia de velhos conhecidos dos paulistanos.
Na sequência, a última banda da noite, o THERION. Até então a espera tinha sido agradável, repleta de boa música, então, os ânimos de todos estavam amenos. O que até que foi necessário, já que as cortinas resolveram pregar uma peça na atração principal, e tomaram seu próprio tempo até decidirem se abrir para revelar a banda. Em uma noite agradável, soou como algo curioso e engraçado, e muita gente inclusive achou que era parte do show.
Já com as cortinas devidamente abertas, o Therion foi aparecendo aos poucos, conforme Theme of Antichrist ia exigindo a presença de cada músico. A estratégia nada incomum de abrir a apresentação com uma faixa do recém-lançado Beloved Antichrist, funcionou a contento, mas foi com a clássica The Blood of Kingu que, digamos, ‘a porra ficou séria’. Primeira faixa de Sirius B (2004) a ser tocada na noite, ela foi também a primeira representante da época em que os suecos alcançaram o auge da sua popularidade, fato mais uma vez comprovado nesta apresentação. A rápida e pesada Din rendeu algum ‘bate cabeça’ antes do retorno à serenidade oferecido por Bring Her Home, mais uma das novas composições a garantir seu espaço no repertório.
A ‘covardia’ começou de fato após Night Reborn: numa sequência avassaladora, Nifelheim e Ginnungagap colocaram Secret of the Runes (2001) no jogo, que seguiu arrasando com Typhon, uma das mais conhecidas de Lemuria (2004). A performance dos vocalistas Thomas Vikström, Linnea Vikström e Chiara Malvestiti estava perfeita (pra variar), e após um descanso com Temple of New Jerusalem, já tínhamos os clássicos de novo, com a perfeita An Arrow From the Sun (Lemuria, 1994), seguida de perto por Wine of Aluqah (Vovin, 1998), Lemuria e Cults of The Shadow (Theli, 1996).
Acredite, porém, quando eu digo que o melhor ainda estava por vir: o final da apresentação contava com alguns dos maiores clássicos da carreira do Therion, e com uma banda visivelmente satisfeita com sua performance, o maior de todos os clássicos, Rise of Sodom and Gomorra (com os vocalistas postados atrás da linha de cordas) e To Mega Therion fecharam uma apresentação perfeita, em uma noite perfeita. Ah, sim, poderia ter durado muito mais. Quem sabe então veríamos Birth of Venus Illegitima, Invocation of Naamah, Flesh of the Gods, Son of the Sun, In the Desert of Set, Riders of Theli, Baal Reginon… Pois é, quem pode deixar de lado tantos clássicos e ainda assim fazer um show perfeito? O Therion.