Por Paulo Cesar Teixeira
Nossa origem nos define. Se não define, ao menos guia nosso modo de pensar e se apresenta em pequenos detalhes do cotidiano quando, subliminarmente, tomamos alguma decisão ou adotamos um ponto de vista que nos remete àquela específica fase da vida.
E pouco importa se a pessoa saiu do Uruguai com 17 anos para morar na Suécia e se tornar um dos melhores baixistas do heavy metal contemporâneo. Algumas relações não se perdem. Mesmo morando fora de seu país natal por mais de 24 anos, Martin Mendez, em um nobre ato de nostalgia e saudade, criou em 2020 um projeto de death metal chamado White Stones para homenagear suas raízes uruguaias.
Mendez é conhecido no cenário do heavy metal mundial por integrar o Opeth, banda sueca que transbordou os rígidos limites musicais impostos pelas vertentes do estilo pesado. Sua entrada no grupo se deu logo após o fim das gravações de “My Arms, Your Hearse” (1998), e seu primeiro álbum oficialmente gravado com a banda foi “Still Life”, de 1999. Desde então, firmou sua reputação como baixista por meio de excelentes álbuns como “Blackwater Park” (2001), “Damnation” (2003), “Heritage” (2011) e, mais recentemente, “In Cauda Venenum” (2019).
Apesar do sucesso, ele se diferencia pela personalidade reservada, semelhante talvez a John Myung, do Dream Theater. Se você já viu Martin Mendez em um show, sabe do que estou falando. Muito técnico, ele entra no palco para fazer um trabalho cirúrgico e impecável, com pouquíssima interação com a plateia.
Talvez seja por isso que, ao ser anunciada a criação do White Stones, houve alvoroço na cena musical, especialmente para os fãs de Opeth (como este que vos escreve).
Intitulado Kuarahy, o álbum foi lançado pela Nuclear Blast e distribuído no Brasil pela Shinigami Records. A tônica do projeto volta-se às origens uruguaias de seu criador, algo perceptível em diversos detalhes do álbum.
Em primeiro lugar, o nome do grupo foi retirado do lugar em que ele cresceu no Uruguai, “Piedras Blancas”. O título do álbum, Kuarahy é de origem guarani e significa a divindade “sol” para os povos nativos que habitavam a região antes da colonização europeia. Vale lembrar que o sol é um símbolo que integra a bandeira do Uruguai, e, por consequência, também compõe o logotipo da banda.
O conceito gráfico da capa é macabro e retrata um ambiente infernal (ou talvez o purgatório), desolador, onde diversos indígenas estão amontoados ao pé de uma mulher, também indígena, segurando uma foice, que aparenta ser a encarnação da morte. Porém, o que mais chama a atenção é que ao seu lado encontra-se um padre ajoelhado com as mãos estendidas em sua direção, em uma inversão histórica de papéis, como se estivesse pedindo perdão pelos séculos de escravidão e extermínio dos povos nativos. Interessante que essa mudança de posições se encaixa não apenas na história uruguaia, mas também na de qualquer outro país da América Latina.
Quanto às músicas, é preciso salientar logo de início que não se trata de um álbum comum de death metal. A intenção não foi reproduzir bandas como Morbid Angel ou Entombed, mas sim, criar algo próprio e original dentro de uma vertente consolidada do heavy metal.
Assim, o som desenvolvido pelo grupo não tem as características comuns da velocidade e das guitarras distorcidas que quase tiram o fôlego do ouvinte. Na verdade, o White Stones apostou muito no groove, pois todas as suas músicas têm ritmo e prezam mais pela qualidade do som produzido do que pela complexidade das notas tocadas.
A bateria, um dos instrumentos responsáveis por auxiliar a toada do som, é bem conduzida por Jordi Farré, que alterna entre o groove e momentos pontuais de blast beats (Rusty Shell e Ashes, por exemplo), mas às vezes chega a abusar do pedal duplo.
Agora, uma surpresa. Mendez não se encarregou apenas do baixo, mas também tocou guitarra em todas as faixas, o que mostra toda sua habilidade como artista. O som mais leve e sem distorção do instrumento é proposital e pode inicialmente ser estranho para os ouvidos. Na verdade, o peso vem do conjunto da guitarra e do baixo (este sim mais distorcido), cuja mistura consegue deixar o som mais denso e interessante.
Por se tratar de um projeto solo, é comum o artista principal convidar amigos de outras bandas, talvez para lhe dar segurança ou a sensação de se sentir mais à vontade nessa caminhada solo. Assim, Fredrik Akesson (Opeth) e Per Eriksson (Katatonia e Bloodbath) contribuíram com solos de guitarra em várias faixas do álbum.
As vozes ficaram a cargo de Eloi Boucherie, que também é vocalista de uma banda catalã chamada Vidres a la Sang. A escolha me pareceu ideal, pois seu gutural é impressionante, como se viesse das profundezas de uma caverna sombria, e isto, por incrível que pareça, combinou muito bem com o groove proposto e com as guitarras menos distorcidas.
Como Martin Mendez desenvolveu sua carreira exclusivamente no Opeth, era possível que isto refletisse, ainda que indiretamente, no som do White Stones. Pode ser que a mudança de estilo a partir de Heritage (2011) tenha influenciado no timbre da guitarra proposto pelo White Stones. Tanto é que, logo na faixa de abertura, Kuarahy, as notas lembram algo que poderia perfeitamente se encaixar na fase mais recente do grupo sueco.
A excelente Rusty Shell foi o primeiro single lançado pela banda e enfatiza o lugar da mulher dentro da nossa sociedade atual, talvez uma homenagem a alguma pessoa querida na vida do baixista e fundador do grupo. Esta faixa já contempla todas as características citadas nos parágrafos anteriores quanto ao som proposto, algo que se reflete nas demais faixas e torna o trabalho bem uniforme e coeso. E não, o álbum não é cansativo, apenas falta um pouco de inspiração nas últimas faixas.
Worms mantém a energia e sua letra relata um problema comum em qualquer sociedade: líderes gananciosos manipulando e seduzindo seu povo com falsas promessas. O clipe lançado para esta faixa tem um jogo de câmera que traz uma sensação perturbadora que é potencializada pelas imagens de vermes (tradução literal do título) ao longo do vídeo.
O álbum tem passagens que flertam também com o misticismo, às vezes com toques indígenas. Por exemplo, Guyra, cujo título significa “pássaro” na língua guarani, e The One, cuja letra nos remete a uma profecia macabra quando Eloi vocifera: “You are the summit of our blood”, que em tradução literal seria algo como “Você é o cume do nosso sangue”.
Drowned in Time é outra bem executada faixa que descreve o poder avassalador do tempo na vida dos seres humanos. Já o vocal rasgado de Eloi em Infected Soul, outra faixa que ganhou videoclipe, ressoa um pouco como o tom de voz de Mikael Akerfeldt em My Arms, Your Hearse, álbum que fez o Opeth começar a transição do black metal para o progressive death metal.
Já no fim, a jornada nos leva à intensa Taste of Blood, com direito a uma caótica passagem sonora dos instrumentos e Eloi murmurando em espanhol: “Cuando la luna se cubra/ De nuestras penas/ Pazuzu reinará”. Apesar da agressividade da faixa, logo em seguida o álbum se encerra com a calma e instrumental Jasy, que significa “lua” em guarani, lembrando que o álbum se iniciou com a faixa-título Kuarahy (sol).
Este álbum não é “mais do mesmo”, muito menos uma aventura solo sem um objetivo. O projeto idealizado por Martin Mendez é autêntico ao propor uma sonoridade diferenciada e com toques latinos ao death metal, além de realçar o talento de um baixista/guitarrista que não teve medo de inovar dentro de um estilo usualmente não receptivo a grandes mudanças.
Em Kuarahy, essa originalidade encontrou o saudosismo, e Mendez mostra que a distância e o tempo não enfraqueceram sua origem e formação musical, ambas umbilicalmente conectadas ao Uruguai. E isso é algo que ele faz questão de mostrar ao mundo.