Por Daniel Agapito
Fotos: Gabriel Eustáquio
Desde que a pandemia acabou, as atividades relacionadas à música ao vivo voltaram em peso, com os artistas ouvindo cada vez mais o famigerado “come to Brazil” que parece dominar as redes sociais. Tem se tornado uma ocorrência cada vez mais comum ter diversos shows internacionais relevantes acontecendo no mesmo dia, especialmente nas grandes capitais, como São Paulo, que acaba recebendo boa parte das atrações de grande e médio porte. Acontecem também meses dominados por apresentações relevantes, como foi o caso de novembro do ano passado, que viu nomes como Satyricon, Dirkschneider, Jerry Cantrell, Linkin Park, Enslaved, Katatonia e Hypocrisy passarem pela cidade da garoa, todos na mesma semana (sem contar Asphyx, Static-X, Picture e Converge nos dias anteriores); só quem viveu – ou melhor, sobreviveu – àquela semana sabe o caos que foi.
Este último mês de maio seguiu em uma linha parecida, não necessariamente em relação à quantidade de eventos, mas sim de escopo, pois tivemos simplesmente três noites de Bangers Open Air e três de System of a Down em duas semanas, prato cheio para os metaleiros paulistanos. Os últimos dias, por sua vez, foram mais leves, com menos bandas carimbando seus passaportes, mas não quer dizer que alguns fãs não tiveram a chance de assistir shows esperados há tempos de bandas clássicas, como foi o caso dos Buzzcocks, voltando ao país após 15 anos, Evadne, que apareceu por aqui pela primeira vez, mesmo com mais de 20 anos de carreira, e, é claro, o retorno do Miss May I. O início da Latin American Tour 2025, primeira turnê dos nativos de Troy, Ohio, em território latino desde que acompanharam Chelsea Grin e Asking Alexandria em 2012, aconteceria no intimista City Lights, casa no bairro de Pinheiros com capacidade para aproximadamente 500 pessoas, em uma quinta-feira gélida, menor temperatura do ano até então, e com a cidade mais travada pelo trânsito do que o normal.
Os serviços começaram relativamente cedo naquela noite, perto das 19h, com os piracicabanos da Into the Void, responsáveis pela abertura do evento. Apresentando um deathcore furioso de qualidade, fizeram um show relativamente curto, que não passou dos 35 minutos, focando em seu único álbum até então, Existence Is a Nightmare (2022), com faixas como a pesada Slaves e Greed, que tem um breakdown absolutamente nojento (do melhor jeito possível), daqueles para bater cabeça com o corpo inteiro, realmente de deslocar o quadril. Mostraram a força da cena nacional do ‘core como um todo ao longo de sua performance, pois Daniel Martins (vocal) convidou André Barrial, voz da Fim da Aurora, para dar uns gritos em Desolation, que originalmente conta com a participação de Theo Moretti, vocalista da Moana, veteranos do cenário interiorano paulista. Fecharam com Orphans of Hope, seu lançamento mais recente, trazendo uma última dose de energia a uma base de fãs que demonstrou ser bastante receptiva.
O relógio marcava às 19h45, ainda não era a hora dos headliners, mas, pela energia do público, era o que parecia. Um dos maiores, se não o maior, nome do metalcore nacional em atividade, desde o primeiro momento ficou óbvio que quem estava lá para ver o Miss May I também era fã do John Wayne. Bastou um simples “boa noite, São Paulo, vamos se mexer aí” do vocalista Guilherme Chaves para a casa explodir. Ao som de Aliança, hit de seu primeiro álbum, Tempestade, os fãs demonstraram estar em estado de êxtase, energia que continuou lá no alto na sequência, Midas, que viu a abertura de uma roda até grande considerando o tamanho do local. Reconhecendo a história da atração que subiria no palco logo após eles, Chaves disse que era uma honra gigantesca tocar com o backdrop do Miss May I atrás deles, dada toda sua história. Não eram apenas os gringos que tinham história, demonstrado pela própria audiência, que cantava cada verso de cada música, desde as “clássicas” aos novos lançamentos, além de baterem cabeça como se não houvesse amanhã. Pesadelo Real, joia da coroa de Dois Lados, Pt. I (2015), último álbum com Fah no vocal, teve seu “pré-breakdown”, “eu quero ser parte do seu sonho” ecoado a plenos pulmões pelos presentes.
“Vamos de hit agora”, disse Guilherme, dando sequência. Veio Reconectar, um de seus últimos lançamentos, faixa mais emocionante, daquelas para chorar enquanto bate cabeça. Equilibraram músicas novas com antigas ao trazer Tempestade, responsável por introduzir a John Wayne ao mundo, sendo a abertura de seu já citado primeiro álbum (sem contar a introdução Tormenta, que também foi tocada pelo sistema de PA). Chaves não cantou esta última sozinha, tendo chamado Daniel Martins, que havia quebrado tudo com a Into the Void para dar uma ajuda. Expondo uma indignação comum entre os fãs, o vocalista levantou a latinha que estava em sua mão e disse: “Vocês acreditam que isso é água? Em lata? Sempre que venho aqui falo isso, porque é inacreditável.” As participações continuaram com Aliança, Pt. II, primeira faixa com Guilherme na voz, trazendo Milton Aguiar, vocal do Bayside Kings. Fecharam contando com mais uma participação, agora de André Barrial, que já havia figurado na banda anterior. O vocalista nem teve que apresentar Lágrimas para a reação dos fãs ser estrondosa.
Bruno Genaro, uma das cabeças por trás da New Direction Produções e figura conhecida do hardcore piracicabano, subiu ao palco para introduzir a banda que todos queriam ver e fez uma pergunta simples: “Os caras demoraram 13 anos pra voltar, agora querem voltar todo ano, vocês aguentam show do Miss May I todo ano?” A resposta foi unânime. Além disso, agradeceu a presença de todos, casa cheia na quinta-feira não é fácil, comentário comprovado por um fã em específico, que gritou “ano que vem tinha que ser no sábado”. Em meio a diversas gargalhadas, o público todo começou a gritar “sá-ba-do! Sá-ba-do!”
Logo dos primeiros segundos de At Heart, introdução que soava pelos alto-falantes, a energia absurda deles era aparente: estavam para lá de animados para tocar no Brasil de novo e a casa pequena e o palco baixo, sem grade, só serviu para aumentar a conexão entre a banda e seus fãs. A galera toda, tanto banda quanto público, batia cabeça em uníssono – visto de cima, era como se fosse uma onda. Começaram logo com Hey Mister, destaque do disco de 2012 (At Heart), divulgado na época em que vieram pela primeira vez, e o clima era incrível, com a grande maioria cantando junto e no mesmo volume dos próprios músicos. Passaram para seu repertório mais novo com Unconquered e Into Oblivion, ambas do último álbum, Curse of Existence (2022), que, mesmo recente e até diferente, trazendo um som mais polido, foi bem recebido por quem estava lá.
“A última vez que viemos foi em 2012, com Chelsea Grin e Asking Alexandria, quem lembra? Então vamos tocar algumas mais old school para vocês!” Trouxeram de volta todo o espírito do metalcore de 2010, aquela coisa tosca, bater cabeça de perna aberta usando uma calça jeans preta um pouco apertada demais (mesmo estilo dos tios do hard, é só trocar o couro pelo jeans) com algumas músicas do seu debut, Apologies Are for the Weak, sendo elas A Dance With Aera Cura, que realmente colocou os fãs para dançar – a roda só crescia – e Architect, emendadas uma atrás da outra, com pouco respiro. “Estão conosco nesta noite? Estão com o Miss May I?” Os gritos abundantes do nome deles, fazendo o City Lights parecer mais uma sala de aula de inglês do que uma casa de shows, responderam rapidamente. “Sei que faz bastante tempo que não aparecemos por aqui, estava falando com o Bruno sobre isso hoje de manhã, prometo que não vamos demorar tanto para voltar” – sim, a energia dos brasileiros havia rapidamente conquistado o vocalista Levi Benton.
“Fizemos tanta coisa desde então, lançamos alguns CDs. Bom, aqui vai a faixa-título de um deles, essa se chama Deathless, quero ver seus chifres no ar!” Com seu refrão limpo, vocais alternando entre Benton e Ryan Neff (baixo) e seu final cheio de “uô ô ôs”, baboseira de emo, se perguntar para seu tio, não houve surpresa alguma quando o público inteiro cantou ambas partes em uníssono. Foi com a pouco agressiva I.H.E. (“I Hate Everything”) e um singelo “let’s go, motherfuckers” do vocalista que a roda realmente atiçou, apesar de todos estarem batendo palminha no ritmo segundos antes. Por essas e outras que os shows de metalcore acabam sendo engraçados: num momento estão todos juntinhos cantando, para logo depois saírem na mão, mas com a mesma rapidez voltam a estar abraçadinhos chorando. Fazendo sua melhor imitação do Chorão, Benton começou: “Eu digo ‘under’, vocês dizem ‘fire’!” O mesmo aconteceu antes do terceiro refrão e no final já era difícil distinguir o que era fã cantando e o que era a banda.
“Antes de continuarmos, essa próxima música é muito especial para nós, é do nosso ‘disco pandêmico’. Todos nós estamos na banda há mais de 15 anos, e na pandemia não fazíamos ideia se íamos conseguir continuar, não sabíamos o que iria acontecer, mas estamos aqui e só temos que agradecer a vocês. Tudo que peço hoje à noite é que abram uma roda.” Dito e feito. Mesmo nos momentos mais melosos da faixa, os “você nunca saberá a dor que escondo dentro de mim”, estava lá no meio o vórtice humano em sentido horário. Monument (2010), álbum que realmente fez a banda estourar, só foi contemplado duas vezes ao longo das 13 músicas do setlist, começando com Masses of a Dying Breed, que trouxe de volta as palminhas sincronizadas. Antes do penúltimo refrão, Jerod Boyd (baterista) mostrou respeito aos clássicos quando enfiou inesperadamente a virada de In the Air Tonight ali no meio, antes de Benton declarar seu amor ao público, junto de um boa noite.
“Deu para se divertir hoje? Estamos longe de casa, longe de nossas famílias, longe de tudo, mas vocês fazem valer pena, vocês são a nossa família! Só vamos tocar mais 3, não vamos voltar para fazer bis, então preciso que saiam do chão!” Nesse momento, era inegável o choque no rosto de muitos que estavam ali – iriam demorar 13 anos, viajar mais de 8 mil km para tocar 13 músicas? Independente das críticas à duração do show, as três lâmpadas de nostalgia que seguiram fizeram todo mundo esquecer de qualquer problema que poderia estar rolando, seja o show, o parto que iria ser voltar pra casa depois, o fato de ter que trabalhar no dia seguinte, tudo sumiu nas primeiras notas de Relentless Chaos, que fez aparecer algum instinto primal nos fãs, com todos batendo cabeça de forma tautócrona com a caixa. Fica realmente difícil fazer jus à experiência toda apenas com palavras, sentir o chão tremer com os pulos da casa esgotada ao som de um dos maiores hinos do metalcore é algo verdadeiramente especial. Levaram o nome de forma bem literal e trouxeram um caos implacável.
“Foi bem aqui que as coisas começaram para o Miss May I, um verdadeiro flashback! Se você conhece essa, pode cantar com a gente.” Fortalecendo o clima compassivo, estava liberado perdoar e esquecer, visto que os bumbos duplos vertiginosos e o riff sem piedade de Forgive and Forget dominavam o bairro de Pinheiros. Toda a calma dos refrãos limpos de faixas anteriores foi trocada por um misto de agressividade controlada e nostalgia, realmente ornando com o refrão: “Me leve a como era antes, nunca vou fechar meus olhos de novo, como posso esquecer um lugar assim.” Benton até soltou um “holy shit” enquanto cantava, impressionado com a reação dos fãs. Fechando da maneira mais catártica possível, Shadows Inside, uma de suas músicas mais populares conforme as plataformas de streaming, concluiu a noite, fazendo o público ir embora com um sorriso no rosto.
Tendo observado boa parte dos shows recentes de metalcore de perto, uma coisa ficou óbvia: o público pode não ser o maior, mas a conexão entre fãs e banda é algo que você não encontra em nenhum outro gênero. Quem gosta, gosta demais: todos cantam alto, comparecem em peso nos eventos, dão a vida nas rodas. Em relação às bandas em si, todas aproveitam essa conexão com a galera e aproveitam cada segundo em cima do palco. Por conta das casas geralmente não serem as maiores, eles não têm espaço para trazer grandes produções, pirotecnia e coisas do tipo, no máximo algumas plataformas para os integrantes subirem, mas no City Lights, nem isso, então os shows acabam sempre sendo diretos, sem massagem, só banda e público. O Miss May I não foi exceção: a apresentação nem chegou a bater uma hora, mas não pareceu que faltou nada. Agora, só nos resta acreditar que vão cumprir sua promessa e não demorarão mais 13 anos para voltar às terras tupiniquins.
Setlist Into the Void
Intro *
Burn
Slaves
Anxiety
Greed
Desolation (c/ André Barrial)
Orphans of Hope
Setlist John Wayne
Intro *
Aliança
Midas
Abel
Demasia
Pesadelo Real
Reconectar
Tormenta (Intro) *
Tempestade (c/ Daniel Martins)
Aliança, Pt. II (c/ Milton Aguiar)
Lágrimas (c/ André Barrial)
Setlist Miss May I
At Heart *
Hey Mister
Unconquered
Into Oblivion
A Dance With Aera Cura
Architect
Deathless
I.H.E.
Under Fire
Bleed Together
Masses of a Dying Breed
Relentless Chaos
Forgive and Forget
Shadows Inside
* pelo sistema de PA
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